Sei o que pensas sobre a eutanásia Paola e percebo-te. Ultimamente tenho tempo de sobra para pensar e deixa-me dizer-te que vivemos num país judaico-cristão, onde ainda, a par da hipocrisia, o sofrimento é inerente e obrigatório na vida de cada um. E ai de quem não sofra! Que raio de ser será aquele que não sofre?
É por isso que não podes ser tu a decidir sobre a tua vida, têm de ser os outros, claro! Os outros, é que sabem sempre o que é melhor para ti, mesmo que seja contra a tua vontade. Uma coisa é o que tu queres, outra é o que tem de ser. E como sabes, o que tem de ser tem uma força enorme. A força que lhe dão!
O que importa é o que parece ser o certo, não interessa se é, interessa que pareça!
É por isso que colocas os pais num lar e os deixas lá a morrer todos os dias bem devagarinho. Até podes ir visitá-los, mas não os deixas sair porque tens medo que eles sejam atropelados, se percam e depois o que iam dizer as pessoas? Que os abandonaste? Que não quiseste saber deles? A verdade é que assim ninguém percebe que, de facto, tu não queres mesmo saber deles e muito menos se percebe que os abandonaste, quando lhes retiraste a dignidade e os desrespeitaste por não ligares nenhuma aos seus gostos e desejos e os proibistes de serem felizes, prendendo-os dentro de quatro paredes e permitiste que todos decidam para onde vão, o que comem, a que horas se levantam e se deitam, o que fazem, e até o que vêm na tv.
Permitistes que sejam tratados como se fossem gaiatos, mais novos do que tu e se eles quisessem a eutanásia, não irias permitir. Não que até não te desse jeito, mas o que é que os outros iriam pensar?
E porque ninguém deve ser autónomo, independente e dono de si, é que quando entras para um lar, muitas vezes deixas de gerir a tua reforma e ficas à mercê de quem a gere. Queres beber um café? Temos pena, mas como já gastaste o dinheiro que te deram para a semana, vais ter de esperar até à próxima.
Como fazias com os teus filhos, para que aprendessem a gerir o dinheiro, agora fazem contigo, porque és velho, só por isso! Eles acreditam que por seres uma pessoa velha perdeste todas as tuas capacidades.
E ainda te dizem:
-Mas como quer que se faça com alguém que já não tem noção do dinheiro, e que se lhe dermos o pode gastar todo sem noção, ser roubado ou até dá-lo todo?
E é tão simples Paola! Inventar e fazer dinheiro próprio da instituição, com um cartão substituir o dinheiro, e mais umas tantas ideias para estas situações. Temos instituições já com equipas multidisciplinares e com algum trabalho efectivo por aquilo que tenho observado, embora com alguma dificuldade em se tornarem interdisciplinares. Não percebo esta apatia técnica em antagonismo com outras espectaculares!
Mas como te dizia, este suicídio diário é generalizado e até permitido, agora decidires sobre a tua sorte, isso é que não!
Há um mês houve um passeio aqui no lar e é fantástica a forma como os animadores decidem quem vai. Primeiro dizem em voz alta a todos nós. Claro está, que só alguns percebem, outros, como pessoas com pouca audição e portadores de demência, não ouvem e não percebem. Então os animadores resolvem convidar apenas as pessoas que pensam valer a pena ir, os que lhes parece que irão apreciar, os que têm dinheiro para pagar o passeio e os que podem ir segundo as condições físicas e humanas que a instituição tem. Ou seja, as pessoas que dão menos trabalho, porque não há pessoal suficiente para acompanhar e ficar no lar e porque as carrinhas também não têm as condições necessárias para transportar quem tem mais dificuldade de locomoção.
Eu fui uma das convidadas, mas recusei – me a ir quando vi o Arnaldo encostado à porta do lar, de mão na boca, a olhar para a fila dos colegas que iam, e ele nada. Todos passavam por ele como se fosse invisível. Os que o viam diziam-lhe para ir até à sala ver tv. O Arnaldo não percebia, olhava cada um que passava, como se quisesse dar a mão com os olhos, num pedido surdo de – Levem-me! Por favor, eu também quero ir!
Não fui capaz e fiquei ali com o Arnaldo e nunca vi ninguém adulto com o olhar mais longo e triste como o do Arnaldo. Acompanhou logo desde manhã a preparação de todos, a espera do autocarro, a entrada para o autocarro e depois todo o trajecto da viatura até desaparecer lá ao fundo na curva da estrada.
O Arnaldo ficou ali a olhar para a porta e para nós e não percebia porque não o tinham levado. O Arnaldo tinha demenciado. Não sabia quem era, mas todos sabiam que ele tinha sido o maior e melhor sapateiro da cidade. Algumas pessoas que dirigiam hoje o lar, tinham levado até ele sapatos rotos que ninguém já arranjava, quando eram uns pirralhos. Mas ele arranjava-os sempre e ficavam como novos.
Como te disse, ninguém sabe o que é melhor para ti se já fores velha, do que uns fedelhos com a mania que são grandes. E eutanásia? Nem pensar! Se quiseres podes escolher o suicídio. Quando derem por isso já cá não estás e do outro lado não há polícia! Ou então envelhece e vai para um lar, ali todos sabem o que é melhor para ti, menos tu, claro!
Regina Lourenço
Assistente Social - Academia de Empreendedorismo em Serviço Social
Supervisão Profissional em Serviço Social na área do Envelhecimento e Empoderamento Profissional
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